quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Eu e o Ler


Falar de minha iniciação com a leitura, com os livros não deixa de ser logo de início algo delicado. É coisa de intimidade! Por que me reprovo desde a escolha das palavras à construção de um mero período. Queria que fosse realmente traduzido em palavras o quanto sinto por esta e nesta relação de uma forma que elas ganhassem força e autonomia para se mostrarem em auto-relevos. Você pode até achar certa demasia, mas acredite: tenho prazer nisto! É como buscar os meios mais galantes para descrever algo que teve o poder de transformar cada pedaço meu e continuar me dizimando para me reconstruir a cada título, capa, formas de letras, frases espalhadas estrategicamente... os livros me fazem perder noção de espaço e tempo; me escravizam; me fazem perder o apetite ou conviver com este enquanto me engano que lerei só mais uma página; me deixam com cara de outros e como se não bastasse tudo isso, me roubam a identidade me dando outras que dão poderes ilimitados de ir e vir, ser e deixar de ser, onde e quando quiser, o que eu quiser!
Isso tudo começou lendo gibis. O mundo se tornou o melhor brinquedo para aquele moleque que até na escola ficou de castigo por ser pego em flagrante lendo Zé carioca e Turma da Mônica enquanto a professora – logo adiante, professores – repetiam fórmulas que julguei desnecessárias. Perguntava comigo mesmo: o que o Clark Kent ou O Pequeno Ninja fariam com essa matéria¿ quando não tinha vontade de ser o Chico Bento e com sua simplicidade falar umas verdades para a professora! Mas aí como não tinha coragem com os olhos fora dos quadrinhos, então para mim nada importava alem de estar junto a eles e voando e combatendo o mal, impedir vilões e roubar goiabas do Nhô alguém num plano mais real, porém virtual!
Meus pais me proibiram de comprar “revistinhas” e me puseram para ler aqueles livros de língua portuguesa recheados de fábulas e desenhos engraçados... não me lembro o nome desses livros, mas posso sentir até hoje o cheiro que exalava daquelas folhas espessas e de sua capa verde-musgo descascando, soltando o plástico que lhe revestia. Tinha que treinar leitura para toda segunda-feira: ler em voz alta para os colegas e uma professora que empunhava como uma nazista uma régua de madeira medindo sessenta centímetros (a metade de sua estatura). A cada tropeção em palavras conhecíamos o poder daquela régua! Chorávamos, ríamos, nos assustávamos! Ela era a vilã e a Cristina, nossa arquiinimiga, sua fiel escudeira – a menina que não errava na leitura! Como tínhamos vontade de sabotá-las, mais ainda, tomar aqueles 60 cm de tirania que lhe dava poder sobre nossos medos e receios – a maldita régua! Dona Maria do Carmo. Inesquecível D. Maria do Carmo! Naquele tempo soava mais como “um pequeno ser de idade avançada que enfeitiçava nossos pais convencendo-os de que nós, além de em sala de aula, era preciso prorrogar nossa tortura em casa!
Um dia fiquei sabendo que TINHA que ler um livro e responder uma ficha literária. Era a primeira vez que ouvia algo daquela magnitude lingüística! Ficha literária!
– Professora... vim buscar o livro para fazer o trabalho...
– Engraçadinho você, seu Silas! Diga a seu pai que o livro está nas livrarias esperando que ele lhe compre para que você não reprove! E dessa vez não é suas revistinhas, não! É coisa séria!

E mais uma vez a régua estalou sobre a madeira gasta da “mesa da professora” com toda a força daquele bracinho de mulher que se transformava em algo muuuuito maior! É lógico. Todos pagaram o preço de minha estúpida pergunta! E mais! Sabia que meu pai não teria dinheiro para comprar aquele livro... A ilha perdida! Como esquecer do primeiro livro que li¿ um livro que custou dinheiro emprestado de um tio para que fosse comprado numa tarde de quinta-feira para concluir o “trabalho” antes que o sol desse as caras na sexta-feira!

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